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De metalúrgico a presidente, os vários Lulas

O historiador John French, autor de biografia de Lula recém-lançada, expõe um panorama instigante de uma pesquisa de 40 anos sobre a maior liderança política do Brasil



O entrevistado desta edição de Teoria e Debate é o historiador John French, autor de Lula e a Política da Astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil, recém-lançado no Brasil em coedição pela Editora Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo (disponível para download). O livro é uma biografia de Lula, resultado de uma pesquisa de 40 anos baseado em vasta documentação. Se oferece como uma leitura instigante, principalmente neste momento pelo qual passa o Brasil, quando o ex-presidente novamente disputa governo da nação. Quem nunca questionou: o que move Lula? O que explica sua capacidade de mobilização no país e sua desenvoltura no cenário mundial?


John D. French é professor de História na Duke University e North Carolina University. É autor dos livros O ABC dos Operários: conflitos e alianças de classe em São Paulo (1900-1950) e Afogados em Leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros, editado pela Editora Fundação Perseu Abramo, dentre outros. French obteve seu doutorado em 1985 em Yale University, orientado pela historiadora brasileira Emília Viotti da Costa.


Desde 1979, estuda temas relacionados a história do trabalho, escravidão, legislação, política, economia e cultura popular do Brasil.


Para esta conversa convidamos Laís Abramo, socióloga, integrante do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo (FPA), diretora do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil de 2005 a 2015 e diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) de 2015 a 2019; Paulo Fontes, professor no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no qual coordena o Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT/UFRJ); Carlos Henrique, diretor da Fundação Perseu Abramo e Rogerio Chaves, coordenador editorial da editora da FPA.


Paulo Fontes: Lula e a Política da Astúcia é resultado de uma agenda de pesquisa de mais de 40 anos. Ao longo desse período, você se tornou um dos estudiosos sobre o Brasil mais respeitados nos Estados Unidos e um historiador do trabalho conhecido em todo mundo. A história social do trabalho também mudou muito ao longo dessas décadas, globalmente e particularmente no Brasil. Você poderia falar um pouco sobre essas mudanças e como elas afetaram a sua produção e a elaboração desse livro em particular?


John French: Em qualquer área de conhecimento, quem não muda, morre. O dinamismo faz parte de qualquer trajetória intelectual. Quando comecei a atuar, no início da década de 1970, nessa área de pesquisa sobre operários, a questão de gênero não era abordada. Mesmo quando se tratava de trabalhadores têxteis, dos quais a maioria era composta de mulheres, não se tocava nesse assunto. O livro de Elizabeth Lobo, A Classe Operária Tem Dois Sexos, é emblemático de uma mudança fundamental. Para mim e Daniel James, meu colaborador e coautor de muitos anos, era preciso manter uma postura aberta a novas perspectivas, e nesse sentido a questão de gênero tornou-se uma dimensão fundamental. Assim, nossa pesquisa começou a percorrer novas vias. Entre 1987 e 2021, organizamos conferências anuais sobre a história do trabalho na América Latina. A iniciativa contava com o apoio de Emília Viotti da Costa, que considerava a questão operária fundamental para o aprofundamento da historiografia brasileira e latino-americana.


Outra questão importante para a história do trabalho foi a globalização, um tema relacionado com a trajetória do capitalismo e a consolidação mundial do neoliberalismo no contexto da crise do socialismo. Ocorreram mudanças, abrindo mais espaço para o estudo do mundo em desenvolvimento, ou o “Sul Global”, como chegou a ser denominado. Essa tendência estava ligada a mudanças concretas nas relações entre Norte e Sul na década de 1990. Por exemplo, entre 1991 e 1995, participei de um projeto com Silvia Portela da CUT sobre o impacto do Mercosul e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, entre Canadá, México e Estados Unidos. Então, abrir-se para novas perguntas é essencial. Não tem como seguir fazendo as mesmas coisas simplesmente porque sempre foi assim. Isso não pode ser a base nem de uma política bem-sucedida, nem de uma carreira intelectual bem-sucedida.


Laís Abramo: No início do livro você fala sobre a importância de conhecer a vida e a trajetória do presidente Lula para entender o seu processo de formação como liderança e sua projeção no Brasil e no mundo. Você diz que, para entender a trajetória política do Lula e a sua constituição como líder, é fundamental entender as razões pelas quais se deu a irrupção dos movimentos grevistas em São Bernardo do Campo a partir de 1978 (que você caracteriza como uma “insurgência massiva”), em um terreno em que isso parecia improvável, e que essas razões até hoje não foram bem elucidadas (permanecem um mistério), apesar de tudo o que já foi escrito sobre isso, tanto na literatura acadêmica quanto nos relatos mais jornalísticos ou biográficos sobre Lula e seus companheiros. Diz também que, neste livro, você oferece novas visões a respeito. Você poderia explicar melhor quais são essas novas visões?


John French: Já existe uma literatura muito rica e bem-desenvolvida, escrita majoritariamente por sociólogos e antropólogos, sobre eventos, comunidades e fábricas especificamente de São Paulo e do ABC. Um ótimo exemplo desse tipo de estudo é o seu livro O Resgate da Dignidade, um estudo fundamental cuja referência consta no meu livro. Mas a grande dificuldade é que esses estudos são retratos de um determinado momento; com o passar do tempo vêm à luz cada vez mais documentos que podem trazer novas perspectivas. E é aqui que entra em cena o historiador. Por exemplo, tive acesso à documentação produzida pelas agências de segurança; não apenas o acervo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como também do Serviço Nacional de Informações (SNI), que contém uma documentação minuciosa sobre vários acontecimentos importantíssimos daquela época.


Um exemplo: quatro dias depois do começo da greve de 1978 na Scania, Lula, Gilson Menezes e Severino Alves da Silva (as lideranças da fábrica), e mais alguns indicados pelo sindicato, foram convidados a fazer uma assembleia com os operários, que continuavam com os braços cruzados. A transcrição secreta do Dops, com as próprias palavras do Lula, contém um discurso bem mais moderado daquele descrito nas reportagens na imprensa da época, ou mesmo por outros estudiosos dessa primeira greve. Anos depois, um operário da Scania, militante, analisou a forma como Lula tratou as divergências que surgiram entre os operários. Na verdade, muitos nem queriam fazer greve, mas acabaram aderindo pela forma como ele conduziu esse momento específico. Então, se vê que as fontes que temos hoje para pensar questões como essa são muito mais amplas. Não diria que as versões que já existiam eram erradas; afinal, todas documentaram, ofereceram hipóteses e reflexões agudas, ao mesmo tempo que refletiram o momento histórico em que foram produzidas.


Um dos meus objetivos no livro foi retratar com fidelidade a diversidade, a heterogeneidade e a consciência daqueles migrantes rurais que trabalhavam nas fábricas. Desde a época de Luiz Pereira, muitos sociólogos incluíram as vozes de operários em suas explicações, fundamentalmente, estruturais. De minha parte, resolvi tentar desfazer tais interpretações dos dados empíricos e focar na própria consciência dos operários, não no sentido de consciência de classe, mas na consciência, nas tendências, que estavam dentro da categoria. Já com o início das greves, procuro mostrar como Lula – e outras lideranças, mas de fato o seu papel foi fundamental – conseguiu compreender essa diversidade de perspectivas e experiências e construir uma mensagem, uma forma de apresentar as lutas a um público que abrangia desde os operários mais submissos até os mais politizados, aqueles comprometidos com propostas de transformações que iam além de apenas fazer uma greve.


Aqui entramos na questão do momento de transformação de consciência, pois esse ator social que chegou a ser conceituado como o famoso peão grevista do ABC, de fato não existia antes das greves. Muitas observações feitas na época tratavam esse ator de uma maneira a-histórica, como se sempre tivesse existido. Mas na verdade, no começo da década de 1970, o regime militar era muito bem-visto pela maioria dos operários da região. Essa concepção deles como militantes, lutando contra a opressão das mãos de uma ditadura capitalista, não era a concepção dos próprios operários, e sim de militantes operários de esquerda e alguns dos sociólogos que os estudavam. Nessa época não tinha desemprego, as fábricas estavam crescendo, e as condições para luta eram mais favoráveis para ações reivindicativas dos mais ambiciosos.


Então, o que aconteceu entre o começo dos anos 1970 e a eclosão do movimento dos metalúrgicos das grandes montadoras de automóveis do ABC, que recebiam salários maiores que os metalúrgicos da capital, ou de outras categorias? Essa transformação ocorreu justamente por uma questão de liderança. De um lado, havia uma diversidade de consciência; do outro, a possibilidade de mobilização. Faltava algo que vinculasse uma coisa à outra, um líder com capacidade de compreender essa diversidade e soldar, criar alguma espécie de unidade, uma mensagem que abrisse uma oportunidade para a mobilização, e assim uma mudança de perspectiva, de ideias, entre os operários. Até o final da terceira greve, em maio de 1980, havia uma enorme massa de operários, especialmente em São Bernardo, que acabou criando uma identidade coletiva, sempre chamando-se de peões. Na realidade, a maioria dos operários mais qualificados nunca aceitou essa designação, mas a criação dessa interpretação acabou identificando todos dentro dessa forma.


Não era previsível que as grandes mobilizações fossem acontecer, mas ocorreram, e surgiu uma efervescência coletiva que criou algo completamente novo. Isso acabou tendo um impacto enorme na sociedade brasileira. A classe trabalhadora, inspirada por essas mobilizações, teve um papel fundamental na democratização da sociedade em 1985 e mudou o rumo do país. Em geral, as pessoas hoje não falam em termos de classe operária, mas nesse caso sem dúvida temos de reconhecer sua contribuição ímpar.


Paulo Fontes: Ao contrário de grande parte das análises que tendem a enfatizar muitas diferenças entre o Lula presidente da República e o Lula sindicalista e também a destacar a “ascensão social” dele, um dos argumentos centrais do seu livro é o de que não é possível compreender Lula sem entender detalhadamente seus primeiros 40 anos de vida. O processo de migração do Nordeste para São Paulo, as relações familiares, o mundo dos trabalhadores de São Paulo no pós-guerra, o processo de como ele se tornou operário e aprendeu a ser sindicalista e, sobretudo, as greves massivas do ABC no final dos anos 1970 – todos esses fenômenos teriam forjado o que você chama de “política da astúcia” que marcou a liderança e a vida política de Lula. Poderia desenvolver um pouco mais o que é essa “política da astúcia”?


John French: Para mim essa questão é fundamental. Reli recentemente Industrialização e Atitudes Operárias, um estudo feito por Leôncio Martins Rodrigues em 1963 em uma fábrica em São Bernardo. A metade do projeto não chegou a ser feita, porque a pesquisa foi interrompida pelo golpe. (Segundo o próprio autor, Emília Viotti da Costa esteve em sua banca e odiou seu argumento). Enfim, há um lugar em que Leôncio diz que aqueles operários, que, de acordo com ele não possuíam nem tendências conflitivas nem esperança, exibiam atitudes hostis em relação aos seus “superiores”. Eram homens e mulheres do campo. Como explico, utilizando algumas observações sobre o sertão, as zonas rurais de Pernambuco, o mundo dos operários, mesmo no interior de São Paulo, era marcado pela dominação política e, muitas vezes, econômica também. Então, Leôncio diz que esses trabalhadores achavam – sem legitimarem a situação de dominação – que era impossível lutar contra isso, que os poderosos sempre iriam ganhar. Aí o autor conclui que os operários não tinham consciência de classe. Claro que não tinham! A maioria trabalhava como operário há três, cinco anos, já que a fábrica que ele estudou foi aberta somente seis anos antes, em 1957, e tinha algo em torno de 7 mil empregados na época do estudo.


A pergunta para compreender a astúcia é a seguinte: Como os fracos navegam num mundo sobre o qual não têm controle? Essa recusa do conflito, a falta de esperança, é fortemente vinculada às relações sociais das regiões rurais. O que acontece quando essas pessoas chegam num mundo em transformação, marcado por urbanização, industrialização, novas oportunidades? Esse período entre 1950 e 1980 foi a era dourada de São Paulo. Aquela geração de jovens, homens e mulheres, que levaram consigo como herança uma certa forma de compreender o mundo, começou a se diferenciar e adotar uma postura menos pessimista.


O debate sobre os operários de primeira geração nas fábricas de São Paulo sempre girava em torno do impacto dessa herança rural. Pesquisadores como Leôncio, associado com Francisco Weffort e vários outros, eram muito pessimistas. E algumas pessoas com a virada nos anos 1970 quase negaram qualquer influência. No capítulo sobre o afloramento do carisma de Lula, afirmo que o seu papel exibe alguns aspectos do clientelismo, como o papel do grande homem na sua comunidade e a consensualidade.


A astúcia, em primeiro lugar, é uma forma de atuação individual, de como manobrar e ter êxito num mundo em que a pessoa vive à mercê dos poderosos e as oportunidades são extremamente limitadas. Não deve tentar forçar o respeito; é preciso ter pessoas que tenham a confiança e saibam como tratar as pessoas que estão acima. Essa é a diferença entre os rebeldes, como seu irmão, Frei Chico, e Lula, que virou, graças à sua formação no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), um “bom moço”, bem adaptado, e ao mesmo tempo mais teimoso, reivindicando reconhecimento e respeito dos patrões.


O primeiro presidente do sindicato de São Bernardo, o cearense Orisson Saraiva, era taxativo, afirmando: “Eu não gosto de lidar com patrões”. Sociólogos que estudaram o Senai nos anos 1970 afirmavam que essa postura era generalizada entre os operários. Até os rebeldes ficavam nervosos ao ter de interagir com os poderosos. Mas o Lula achava que era possível falar com quem estava acima, levando em conta que não sabiam muito do “peão”, se achavam sempre certos... O fato de ele ter feito uma reunião com Dilermando Monteiro, general do II Exército, e de tê-lo convencido a afirmar que não havia nenhuma subversão nas greves de 1978, é incrível.


A essa altura, as fábricas não eram um lugar de grande colaboração horizontal entre operários. O medo do “facão” (desemprego) era muito grande. Havia desconfiança, pois os operários não confiavam na própria capacidade, e muito menos naqueles que conseguiram alguma ascensão social. Marcos Andreotti, dirigente comunista, metalúrgico e sindicalista, me explicou a “imagem do bem limitado”. Nas áreas rurais, onde não há grande dinamismo econômico, a maioria das pessoas acredita que se alguém subiu, foi à custa dos outros. Como seria possível levar adiante uma luta nessas condições? Nesse contexto, a astúcia é utilizada de forma individual para melhorar a própria vida, não a dos outros. Mas Lula teve a capacidade de usá-la para ganhar a confiança dos operários e trazer melhorias para todos.


Nos últimos anos, o juiz Sérgio Moro e a Operação Lava Jato fizeram grandes esforços para vincular Lula a um triplex no Guarujá e um sítio em Atibaia. Nas greves de 1980, já se dizia que o apartamento de Lula ficava no Morumbi. Na década de 1990, durante dois anos a imprensa veiculou que a compra de uma casa do Lula estava ligada de alguma forma com corrupção. Tudo isso na tentativa de provar às classes populares que Lula era desonesto. Para os poderosos, levantar suspeitas sobre honestidade de Lula provocaria rejeição a líder, facilitando a perpetuação das condições políticas e socioeconômicas que os mantêm no poder.


Laís Abramo: Por que o conceito de astúcia e não o conceito de inteligência, sagacidade? Em inglês a palavra utilizada no título foi cunning, mas em português astúcia pode ter uma conotação muito pejorativa, no sentido de “esperteza”, de se aproveitar de situações.


John French: Houve debate no processo editorial do livro no Brasil sobre a utilização do termo astúcia e algumas pessoas ficaram desconfortáveis. Eu já estava pensando em astúcia quando fiz a tradução para cunning. O termo em inglês também é ligado a inteligência, conhecimento, atuação do indivíduo no mundo. Cunning leader não é um líder desonesto, mas um líder que sabe o que precisa fazer e dizer para quem e em que momento. Poderia dar muitos exemplos da esperteza de Lula. Acho que ele é honesto, sim, mas não teria se tornado um grande político se tivesse revelado a todo mundo tudo que fazia o tempo todo. Um bom exemplo: Lula era amigo dos esquerdistas isolados dentro do sindicato e ao mesmo tempo o afilhado do inimigo deles, Paulo Vidal (ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo). Você pode até dizer: “Mas o verdadeiro Lula estava com o grupo de esquerda do sindicato, que era muito fraco”. Sem dúvida alguma é uma questão de astúcia. Dizer sagacidade, sabedoria ou inteligência... não teria o mesmo significado. No final do livro tinha uma palavra que eu queria usar (mas acabei não utilizando) que é um conceito que vem da capoeira: malícia, muito próximo à ideia da astúcia. Como um capoeirista mais velho, menos forte fisicamente, pode derrotar dentro da roda alguém mais jovem e forte, contra todas as probabilidades? Na greve de 1979, Lula convenceu o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, a devolver o sindicato aos dirigentes da greve... E o governo nunca tinha feito isso em centenas de intervenções em sindicatos ao longo das décadas. Talvez o ministro pensasse que Lula ia perder sua influência frente aos operários, e no ano seguinte ele fez uma greve ainda maior. Mas os operários não acham que apenas honestidade em si ia produzir mudanças no mundo. São muito mais cínicos em relação a essa questão e é preciso ser cínico e saber atuar para melhorar as suas condições de vida com êxito num mundo injusto.


Paulo Fontes: Historicamente a desconfiança e o menosprezo em relação ao povo por parte das elites políticas e intelectuais brasileiras têm sido uma constante. Classe, raça e origem regional são elementos centrais nesse sentimento de desprezo e superioridade. Mesmo entre intelectuais de esquerda, uma suposta insuficiência, atraso e incapacidade política e organizativa dos “de baixo” é recorrentemente manifesta, mesmo que subliminarmente. De forma surpreendente para alguns, um dos pontos centrais do seu livro é o argumento de que a parcela qualificada do operariado do ABC e de São Paulo de forma geral (parte dele de origem rural, incluindo sertanejos e “não brancos”) forjou uma rica cultura intelectual análoga (e em muitos sentidos mais importante) à da elite letrada que se formava nas universidades brasileiras naquele período, em particular na USP. Poderia explicar esse ponto?


John French: Um ponto essencial para compreender esse aspecto do meu argumento tem a ver com a pesquisa do meu ex-professor, um dos grandes historiadores do trabalho nos Estados Unidos, David Montgomery, que escreveu dois livros importantes sobre o período entre 1880 e 1930. Foi no começo dessa época que a produção artesanal nas indústrias foi derrotada, junto com seus sindicatos (craft unions) nas indústrias de transformação. Isso ocorreu no contexto da segunda industrialização que simultaneamente criou operários especializados, dentro de um mundo de operários sem qualificação, que teriam um papel destacado nas lutas nessa época como também na Primeira Guerra Mundial. As famosas “cidades vermelhas” na Rússia, na Inglaterra e nos Estados Unidos, durante e depois da Primeira Guerra, abrigavam exatamente esses grupos: metalúrgicos qualificados, ferramenteiros, torneiros – todos bem distintos da forma de produção artesanal anterior dentro das indústrias metalúrgicas. Montgomery afirmou que essas grandes lutas sindicais estavam vinculadas às tentativas dos operários artesãos de evitarem o seu deslocamento do centro da produção, num contexto em que as qualificações se tornaram cada vez mais fragmentadas, com o objetivo de aumentar o controle dos industriais sobre o processo de produção. As lutas gigantescas dos anos 1930 que lideravam derrotaram a política patronal de não reconhecimento de sindicatos (open shop), levando ao fim de uma era anti-sindical e mudando os Estados Unidos numa reviravolta política e eleitoral conhecida como a New Deal sob o governo de Franklin Delano Roosevelt, que durou até os anos 1970.


A industrialização que surgiu em São Paulo com as montadoras automobilísticas foi exatamente dessa espécie que empregava operários qualificados, fresadores, torneiros, ferramenteiros – os mesmos grupos que estavam na vanguarda das lutas sindicais nos centros da economia mundial. É impressionante que as características desses grupos, sua atuação e suas reivindicações no Brasil eram iguais àquelas dos grandes centros. Outra característica dos operários qualificados na Europa e nos Estados Unidos (e no Brasil) era nível de intelectualização, com uma postura muitas vezes socialista, ou pelo menos reformista. Mas sempre havia um certo grau de formação. Afinal, para ser torneiro mecânico é preciso saber matemática, ler desenhos. Além do mais, esses trabalhadores eram empregados pela indústria que era ícone da modernidade – a indústria automobilística.


Simbolicamente, é importante destacar que Lula terminou apenas quatro anos do ensino fundamental e mais alguns meses do quinto ano, mas na realidade, de acordo com a legislação vigente, o curso do Senai seria equivalente ao ensino médio.


Os sociólogos, cuja maioria não era de origem operária (com a exceção de José de Souza Martins), desde a década de 1950 tinham investigado as transformações em andamento entre os operários, e assim criaram um importante acervo documental.


Estudavam Georg Lukács, a teoria marxista e o vínculo com Alan Touraine. Participavam dos processos globais, mas ao mesmo tempo havia uma diferença social, já que os universitários na década de 1960 eram 1% da população brasileira, e eram marcados, na sua maioria, por uma visão de cima para baixo. Assim não conseguiam reconhecer a existência da questão dos operários qualificados. Mesmo John Humphrey escreveu na sua tese de 1978 – baseada em pesquisa na primeira metade da década – que a impressão geral era que os operários qualificados formavam o grupo mais satisfeito e estavam menos dispostos à luta coletiva (admitiu o erro no seu excelente livro de 1982).


Havia uma forte tensão nas relações entre os intelectuais de colarinho branco e os de colarinho azul, como se diz nos EUA, especialmente a partir de 1968 e com o surgimento da liderança de Lula no final dos anos 1970. Os operários qualificados tinham salário de classe média, ganhavam mais que muitos dos pesquisadores da USP. Reivindicavam o reconhecimento da sua capacidade intelectual que as pessoas instruídas e a sociedade lhes negavam. Há um elemento cultural e, ao mesmo tempo, um diálogo entre dois grupos – chego a utilizar Lula e Fernando Henrique como símbolos dessa interação. Não tenho dúvidas de que esses operários eram intelectuais. Somente é possível negar isso caso se acredite que para ser intelectual é preciso ler diploma universitário e possuir um monte de livros em casa. Mas o mundo não é assim.


Laís Abramo: Na parte do livro em que você analisa a trajetória do Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e o seu processo de construção como um extraordinário líder de massas a partir do ciclo grevista do final dos anos 1970, você destaca a seguinte característica: sua capacidade de encontrar pontos em comum com o outro do qual divergia e, a partir daí, encontrar convergências em situações em que a divergência (e até interesses opostos) predominavam, sem abrir mão de sua posição. Como você avalia o papel dessa característica de Lula nos oito anos em que exerceu a Presidência da República e, em particular, agora em que ele disputa novamente esse lugar?


John French: Este é um estudo sobre os operários e o seu mundo, de Lula e sua família, mas fundamentalmente de sua liderança política e suas características. A tese no final da introdução é bem clara: a essência da liderança política de Lula e as suas características já estavam definidas em 1978, antes das greves. Quando saiu do sindicato, encontrou uma situação muito mais complexa no PT e na CUT e depois na política nacional, quando se tornou presidente da República, mas continuava fazendo política da mesma maneira que tinha feito no sindicato. A definição que ressalto o estilo político de Lula é a capacidade de criação de espaços de convergência apesar das diferenças, caracterizada por uma política aditiva, somadora. Isso é fundamental. O Lula não gosta de cortar relações ou polarizar; prefere manter as pessoas mais ou menos distantes, mas sempre com relações cordiais. Essas características são essenciais para compreender o jogo político que ele faz. Ele não é o homem de ruptura. Mesmo durante e depois das greves, sempre manteve uma certa compreensão em relação a todas as figuras do outro lado, não apenas Romeu Tuma.


Isso vai além de ser um negociador. Tem muita gente que diz que Lula é apenas um sindicalista que gosta de negociar. Mas você não pode negociar se não sabe o que quer. A questão é saber o que é fundamental para Lula. Nesse sentido, Lula sempre está pensando na categoria dos metalúrgicos, na grande massa de eleitores, reconhecendo que os interesses deles são imediatistas, vinculados a coisas concretas. Não é que ele não tenha espaço para as pessoas que têm sonhos de mudar as estruturas econômicas, mas no jogo político a questão fundamental para Lula é de pregar uma mensagem que pode trazer resultados. Pode-se enxergar isso como uma falha ideológica, mas como pode-se observar após os governos Lula e Dilma, ele realmente mudou o país. Havia uma visão de mudanças dentro do âmbito do possível que mudou o país; a popularidade dele é muito vinculada a isso.


Ocorreu uma mudança total da base eleitoral de Lula a partir de 2006, e isso levou a certas dificuldades com a base original. Houve uma desilusão com ele e o PT de uma grande parcela dos intelectuais, mas esses esqueceram ou não compreenderam o que ele disse em 1991: “Temos de pensar como vamos ganhar as pessoas que recebem menos de dois salários mínimos”. Nessa faixa social, possivelmente até 50% do eleitorado, ele hoje tem quase a metade das intenções de voto nas pesquisas eleitorais. Isto é, ele sempre pensa nas eleições como um termômetro que oferecem uma leitura da heterogeneidade de consciência dos eleitores.


No livro, relato uma observação engraçada sobre o assistencialismo, quando os sindicalistas de esquerda da época pautavam o “fim do assistencialismo no sindicato”. Em uma entrevista a uma revista de esquerda, Lula declarou: “Sabe quando eles vão ganhar uma eleição? Nunca.” Reconheceu que os aposentados sempre votam e o apoiariam na primeira etapa dentro do sindicato como diretor de uma espécie de departamento novo que atendia os aposentados e viúvos(as). Ele tem um sentido muito prático das coisas.


Carlos Henrique Árabe: Seu livro mostra-nos a combinação entre mobilização social e disputa institucional em períodos decisivos como entre o fim da ditadura e a redemocratização. Momentos virtuosos, mas não são permanentes na história. Já na conquista da presidência da República, em 2002, esse vínculo orgânico está enfraquecido. Sua conclusão é aberta, discute a interação entre “sujeito social” e liderança política, com certa permanência de aprendizados, laços, referências. Pode nos falar mais sobre essa questão.


John French: Há um conhecido debate sobre o lulismo. As figuras de Lula e do PT são mais do que casadas. Há muitos “Lulas” no Brasil, diferentes porque várias gerações chegaram a encontrá-lo, abraçá-lo, em contextos históricos diferentes e de lugares de fala diferentes. Eu falo de lulismo, não em termos de reformismo, subproletariado, mas sobre o que as pessoas pensam e falam entre si quando manifestam que gostam de Lula. Essa é uma característica distinta do PT, que tem forte identidade como partido. É o mais coerente do país; em torno de um quinto das pessoas se identificam com a sigla, mesmo após o mensalão. Da mesma forma que existem muitos Lulas, existem vários PTs, já que hoje em dia o partido possui uma grande heterogeneidade. Os cientistas políticos (entre eles, Margaret Keck), que participaram de uma mesa redonda publicada sobre meu livro, teceram uma observação que o último terço do livro, que trata das campanhas presidenciais, não dá o espaço devido ao PT. Concordo, por isso queria fazer dois volumes, mas acabei desistindo para fazer um livro mais compacto voltado para as raízes e origens operárias de Lula e sua família e amigos.


No início do livro faço a seguinte observação: no governo de Lula, a maioria de eleitores não tinha nascido na época das greves. Talvez alguns conheçam o filme Lula, o Filho do Brasil, de 2009, sobre o qual, aliás, escrevi um artigo com Antonio Negro para Perseu. É importante que o público geral compreenda essa época da história da ditadura e as grandes migrações e lutas no ABC e a mantenha viva na memória da sociedade. Durante a resistência ao golpe parlamentar contra a Dilma, participaram dessa luta muitos jovens, inclusive muitos daqueles beneficiados pela expansão do ensino superior. Os jovens de hoje que nasceram nos governos Lula e Dilma serão os atores fundamentais num futuro muito próximo. Nesse sentido, espero que o livro também dê uma contribuição. Uma das coisas mais impressionantes foi o fato de que a expansão universitária e do ensino técnico federal no governo Lula foi feita com a experiência dele no Senai em mente. Ele chegou a reconhecer há muito tempo que a questão a ser enfrentada no Brasil não era somente a sua sociedade desigual, nem a distribuição injusta de renda, mas também a distribuição de oportunidades. Aquela geração de jovens operários que se tornaram qualificados tiveram uma oportunidade impossível para os seus antepassados. Quando Lula terminou o ensino fundamental (aliás, o único da família a concluí-lo), apenas 20% dos alunos que ingressavam na escola completavam o curso. A centralidade da educação e do desejo de vencer na vida são forças poderosas. José Pastore, em Desigualdade e Mobilidade Social no Brasil, escreve que é uma coisa sair do meio rural e virar faxineiro, e outra é virar torneiro mecânico.


Rogério Chaves: Tem uma frase do livro que eu considero uma síntese do que eu chamei de parceria estratégica entre a Fundação Perseu Abramo, do PT, e a Expressão Popular, editora do MST e ligada às lutas camponesas: “Quando me perguntam sobre o que sou e a que vim, digo sempre que sou resultado da minha classe. Se a categoria evolui, eu evoluo”. Essa frase pode ser lida na década de 1970, mas lida agora, quase 50 anos depois, continua tendo muita força. Gostaria de destacar que durante o período que Lula estava detido em Curitiba foi formado um comitê Lula Livre e desde o início, o MST, juntamente com a CUT e o PT estiveram presentes criando um clima de apoio. John, este livro foi lançado nos Estados Unidos em 2021. Certamente para os leitores de lá tem um significado, mas para você que significado tem o lançamento desse livro agora nesta conjuntura, em que Lula é a grande alternativa para a transformação do cenário político que o Brasil enfrenta desde 2016?


John French: No final do livro trato da detenção de Lula, dos discursos no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da saída dele da prisão. Cito o relato de Gilberto Carvalho sobre o que aconteceu dentro do sindicato e o que ele chamou da teimosia de Lula em optar por acreditar na institucionalidade. Num momento em que havia uma abundância de provas contra as alegações da Lava Jato, e em que algumas pessoas até o aconselharam a se refugiar numa embaixada ou até sair do país, ele acreditava que a justiça seria feita e a verdade reconhecida. Imaginem se tivesse tomado outra decisão. Tudo teria saído diferente. Carvalho também relatou que Lula anotou que o número de pessoas fora do sindicato não era muito grande: 6 mil, 7 mil no máximo! Não era como na época das greves do ABC, com 40, 60 mil. Mas Lula, confiante, completou: “Você entra na guerra com as tropas que tem”.


Acho que o recrutamento de Geraldo Alckmin – alguém que já derrotou, em 2006 – para ser seu vice retrata muito bem a ideia da criação de espaços de convergência. Ao mesmo tempo, Alckmin tem que confiar que não está sendo usado de uma forma cínica. Isso faz parte da capacidade política. Nesse caso, caberia sim a palavra “sagacidade”.


O mundo mudou fundamentalmente desde os anos 1970 e 1980. Desde o começo, da história do capitalismo, da classe operária e das classes sociais em tais sociedades sempre sofreram processo de destruição criativa, segundo Joseph Schumpeter, que quer dizer que a evolução da sociedade envolve processo periódico de formação e reformação dos seus componentes. As classes sociais nunca foram estáticas. Em uma época nos Estados Unidos havia 800 mil mineiros de carvão. Isso acabou, o que não quer dizer que a herança desse período desapareceu completamente, mas ao mesmo tempo esse processo de formação e reformação da classe operária e dos atores políticos e dos partidos faz parte do processo maior de luta de classes. Não existe uma evolução unilinear. Então, nesse momento, é preciso usar a criatividade, a capacidade e a originalidade, a possibilidade de entrar nos conflitos necessários para esclarecer o caminho a ser percorrido, e não entrar – como Lula diz para as esquerdas em geral – nessa luta fratricida e principista tão comum na história da esquerda no passado quando, para citar uma piada de Lula num Foro de São Paulo, a esquerda se dividia mesmo na cadeia. Os tempos hoje são diferentes e as esquerdas no Brasil e os movimentos socais, novos e velhos, reconhecem que o imperativo, nas palavras de Paulo Freire citado por Lula, é “unir os diferentes para derrotar os antagonistas".


*ENTREVISTA REPRODUZIDA DA REVISTA TEORIA E DEBATE

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